quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sua Alma Imoral


"Então, é o que gente do meu mundo costuma fazer. Beber, drogar-se, inalar uma substância após outra. Inconsequência."
Ele abaixou a cabeça e mirou os próprios tênis, fechou os olhos e riu pelo nariz soltando um meio sorriso debochado. "Se ao menos lhe passassem pela mente que a verdadeira inconsequência não se encontra num filtro de cigarro, muito menos num receptáculo de meros alucinógenos... Não. Não é tão fácil quanto injetar uma agulha."
Esvaziou o copo de uísque pela metade, até deixá-lo cair e ocasionar uma série de cortes em seu corpo. Apanhou seus materiais, despejou-os sobre a escrivaninha e pôs-se a traçar um esboço preciso.
"Eu a encontrei onde se espera encontrar, mas não da forma que se pressupõe. Fui um tolo aliciado por sua alma imoral, esta é a minha cruz."

'Cause all of the stars are fading away, just try not to worry, you'll see them someday...

"Eu sou um transgressor, Julie. E você é o apogeu daquilo que me trouxe ao meu inferno pessoal."

Take what you need, and be on your way...

"Você sempre teve ciência de que seu serviçal não nasceu pra ser consagrado."

...And stop crying your heart out...

"Eu preciso dormir, Julie. Eu preciso me alimentar, por Deus! Eu preciso voltar a abrir os olhos e ver a luz da manhã esclarecer seus cabelos. Não é uma demanda, é um antídoto, e você sabe que não existe outra silhueta de suéter e calcinha que eu anseie assistir frente á minha janela."

Lambeu as costas da mão suja de sangue e álcool, levantou o olhar para o rádio por um momento e limpou a lágrima quente que lhe precingia o canto da boca.
"É Oasis. Céus, como me encontro absurdo nesta situação. O mundo me escarnece, Julie. Apodera-se da minha privacidade com a sua presença, me mata em forma de música. A nossa música."
Friccionou os dedos onde deveriam haver sombras.
"Recordo-me de cada meticulosa curva que se formava em teu rosto quando deitávamos juntos e você entrelaçava suas pernas nas minhas, e do som que fazia quando eu reclamava dos teus pés gelados. Eu lembro da espontaneidade na qual se movia, do jeito meigo de ser, da humildade sincera em tuas ações. Você me surpreendia. Realçava em mim a condição de pecador."
Desenhou a boca, pegou um pincel e passou na ferida do polegar. Seus lábios agora tinham o mesmo vermelho suave de uma aquarela. Assim como a original.
"Lembro-me de configurá-la em minha mente como uma divindade com lábios demoníacos. Nada mais me permite perder a linha do raciocínio tão facilmente. Eu lhe fito a boca e lhe coram as bochechas. Você tem a inocência de uma criança, Julie. É claro, tão somente quando quer."
A retratação perfeita daquilo que o retinha no purgatório. Levantou a folha, mensurou e abriu a gaveta da escrivaninha. Andou até o fundo da sala de estar e colou o desenho no centro do mural. Os joelhos despencaram no assoalho, esmorecido, suas mãos agora arrancavam-lhe as roupas do corpo.
"Eu sei que ainda é capaz de me sentir. Sei o que sinto mas não sei comedir, e isso me corrói. Depois de você, Julie... Eu não tenho absolutamente nada a perder."
Ele sentiu uma explosão dentro do tórax, um nó doído na garanta e a queimadura que o choro deixava em seu rosto.

"Você é a minha inconsequência, Julie. "

domingo, 20 de janeiro de 2013

Panela sem tampa.

Vinha reparado um padrão em sua vida. Não a vida que circunda na presente atmosfera que vivia, mas a vida que completa sua translação dentro de si.
Não se construiu pra ser tampa da panela de ninguém, nasceu como laranja sem metade. Cresceu pra solidão em termos, pra ser o ombro daqueles que possuem a última peça do quebra-cabeças. Pra ser religião, o genuflexório onde os joelhos desgastados depositam as mágoas incorporadas no âmago. Era aquela que todos almejam e aquela por quem ninguém se afeta. Talvez seja tão ordinária que não necessite de complemento. Partindo dessa filosofia, poderia ter em mãos a alma que desejasse. No entanto, que sensatez há em tirar parte de outro? Contudo, poderia querer todas as laranjas, e nenhuma lhe possuir.
Talvez seja amarga demais para conservar gomos de si vagando por entre os andarilhos que não a enxergam.
Deveria haver alguém.
Alguém que apreciasse música dos anos 80,
Alguém que soubesse extrair o melhor de cada ser vivo, que pudesse analisar cada silhueta como uma só.
Alguém que cortasse as cascas do pão, alguém que cantasse pras paredes quando sozinho.
Alguém que desse valor a cada pequeno gesto do dia-a-dia.
Alguém que serenasse seus medos, que passasse o polegar levemente sobre suas sobrancelhas.
Alguém, somente um alguém que ponderasse sobre cada linha dos livros que guarda na prateleira, cujas páginas estão manchadas de café e chocolate.
Alguém que gostasse de Chico Buarque, Zeca Baleiro, Cazuza e Legião.
Alguém que não ligasse pra detalhes fúteis que enchem a cabeça da maioria.
Alguém que contemplasse a arte em todas as suas épocas.
Alguém que sentisse alegria em andar sem rumo, mapeando-se internamente.

Não há ninguém como ela. Ninguém que pudesse preencher seu côncavo. Era singular, um inteiro.
Ela se mantém na prateleira. Até que Alguém resolva retirá-la e ler mais do que meramente o que transparece ser.